A neve caía sobre o norte de Honshu, congelando os caminhos de Sendai. Um vulto carregando um embrulho se esgueirou até a entrada do castelo de Akihiro, senhor da província. Uma das sentinelas, percebendo o ato suspeito, ordenou que o estranho se identificasse. Ao ouvir a voz do guarda, o vulto ergueu a cabeça. Era uma mulher, que deitou o pacote sobre a neve e fugiu.
Um choro de bebê cortou o ar congelado. O soldado pegou em seus braços uma menina. Uma menina sem braços nem pernas. Surpreso, levou a criatura ao interior do castelo. Seu comandante foi chamado e proferiu o destino da criança. Como já não tinha braços nem pernas, ficaria também sem a cabeça. Ordenou que a decapitassem. Para um guerreiro, aquele ato não seria nada além do que um gesto de piedade. Quando um samurai comete seppuku, cortando o ventre com a própria espada, tem diante de si uma dolorosa morte, que pode se arrastar por horas de agonia. É justamente para evitar esse sofrimento prolongado que a sua morte é abençoada com a decapitação.
Que vida poderia ter aquela criatura infeliz? Como poderia ela brincar? Como poderia ela viver? A morte, nessas condições, seria o melhor brinquedo, e a espada em seu pescoço, o único afago de carinho. O samurai ergueu a espada. Durante toda a vida havia sido treinado para matar e morrer sem hesitação. Mas, naquele instante, sua mão hesitou.
O que se passou na cabeça daquela mulher ao abandonar a menina em frente ao castelo? O castelo pertencia a Akihiro, um samurai que não havia conquistado a província com a espada, mas com o coração. O povo dizia que nunca houve um daimyo mais justo e gentil do que ele. Provavelmente, a mulher tinha a esperança de que o bondoso coração de Akihiro pudesse amar uma criatura incapaz de receber o amor da própria mãe. O comandante deve ter chegado a essa conclusão e suspendeu, com grande alívio do executor, a sentença de morte. O destino da menina foi entregue nas mãos de Akihiro. Sem dizer palavra, ele tomou a criança em seus braços. E foi para Akihiro que a menina deu o primeiro sorriso de sua vida.
A menina cresceu. Tinha já quatro anos quando ganhou a primeira boneca. Era uma boneca de cabelos negros, vestindo um quimono vermelho. E a menina sorria para a boneca. Aquele brinquedo era o mais próximo de outra criança que ela já havia visto.
Quando a menina completou cinco anos, Akihiro achou que seria bom ela conhecer outras crianças. A menina ficou encantada com todas aquelas “bonecas” que falavam. Ficou ainda mais encantada ao ver que as meninas andavam! Mas o encanto maior estava em um movimento sublime, um gesto que ela nunca havia sentido: um abraço.
Até mesmo Akihiro nunca a havia abraçado. Nunca lhe passou pela cabeça realizar esse gesto com a menina, afinal de contas, abraços não fazem parte da cultura de um senhor feudal. E também não poderia dar um abraço de verdade na menina, pois um abraço de verdade requer quatro braços – um par de cada pessoa. Sendo assim, abraços não faziam parte da vida da menina.
Mesmo assim, a menina sem braços adorava ver abraços. As outras crianças se abraçavam. Mas o que chamou a sua atenção é que as meninas abraçavam as bonecas também! E as bonecas tinham braços, mas não retribuíam os abraços. Sendo assim, será que ela não poderia ser abraçada também? Como se fosse uma boneca? Ela sorriu. Pediu um abraço. Não recebeu sequer um.
– Não dá pra abraçar você – disse uma menina.
– Por que não? Você pode fingir que eu sou uma boneca...
– Mas você é uma boneca quebrada...
Desde esse dia, a menina não sorriu mais. Descobriu que era uma boneca quebrada. Olhava para a sua boneca, com os braços saindo do quimono vermelho. Desejou ser ela, uma boneca com braços. Ninguém quer brincar com uma boneca quebrada. Ela não comia mais, não falava mais, não sorria mais. Adoeceu.
Akihiro procurou os conselheiros para curá-la. Comprou presentes e agrados, mas nada adiantava. O sorriso da menina sumiu, talvez tivesse partido para o mesmo lugar em que estavam os seus braços e pernas. Em algum lugar, algum lugar...
A notícia de que a menina sem braços estava doente se espalhou. Comovida, uma mulher pediu para entregar, pessoalmente, um presente para a pobrezinha. Ela era uma famosa artífice de bonecas.
A artesã enxugou as lágrimas ao olhar para a menina. Com dificuldade, a criança abriu os olhos e viu uma boneca nas mãos da mulher. Era uma boneca diferente. Uma boneca especial. A menina piscou os olhos. Nunca havia visto uma boneca tão linda quanto aquela. Seus lábios tremeram, lutando para esboçar um sorriso.
– Como... ela... se chama? – perguntou a menina.
A artesã respondeu:
– Ela se chama Kokeshi...
A menina comemorou:
– Nós temos o mesmo nome!
– Eu sei...
A artesã abraçou Kokeshi, enquanto falava algo que a menina não ouvia, porque eram palavras ditas apenas com o coração: “Perdoe-me filhinha... perdoe-me... Mamãe te ama muito”. Mas a menina não ouviu nada disso, apenas sentiu um grande calor em seu peito. Um calor que nunca havia sentido antes – o calor do abraço materno.
Quando Kokeshi nasceu, o pai da menina havia ameaçado matar a criança. Se a mulher não se livrasse do bebê, ele acabaria com mãe e filha. Desde esse dia, a mãe de Kokeshi começou a fazer bonequinhas de madeira. Ela sentia saudades e era essa a única maneira de amenizar a sua dor, a única maneira de pintar um sorriso no rosto da filha. E era uma dessas bonequinhas que a mãe levou de presente naquele dia. A boneca era tão bonita que todas as meninas quiseram ter uma.
As bonecas Kokeshi ficaram famosas por toda a província de Sendai. Bonequinhas cilíndricas de madeira, sem braços nem pernas... Só com uma linda e sorridente cabecinha redonda, porque o sorriso é o que importa na magia de uma boneca. As meninas de Sendai, maravilhadas com essas bonequinhas, passaram a brincar sempre com elas.
Desde então, todas as crianças querem abraçar, também, a sorridente menina Kokeshi.
Conto publicado no livro "Contos do Sol Nascente" (JBC - 2011)
Ilustração (Kokeshi): Alessandro Fonseca (Von Victor)